Prof. Dr. William Puntschart
Historiador do Museu Barão de Mauá
Habilidade, precisão e muito cuidado, além de força física e bom senso, eram estas, entre outras, as principais aptidões exigidas dos trabalhadores nas pedreiras que se formaram em Mauá, ao longo do século passado. Italianos em sua grande maioria, esses verdadeiros artistas, conhecidos como escarpelinos e / ou canteiros, com o seu trabalho de exploração de pedras, contribuíram para o progresso local, tanto produzindo paralelepípedos e guias, empregadas no calçamento de ruas, quanto fornecendo matéria prima para a construção de edifícios, muros de arrimo e calçadas.
De acordo com o depoimento de antigos trabalhadores, pelo menos dois grupos distintos de profissionais atuavam nas pedreiras. O primeiro, composto pelos operários menos especializados, responsáveis, por exemplo, pela conservação dos instrumentos de trabalho, carregamento das pedras, funcionamento do britador e a entrega de encomendas, entre outras funções. O segundo, formado por homens habilitados, responsáveis pelas tarefas de cortar enormes pedras, transformando-as em milhares de paralelepípedos. Estes eram os escarpelinos ou canteiros propriamente ditos.
Por sinal, as próprias denominações escarpelinos e canteiros merecem nossa atenção. A primeira, deriva-se de escarpelo, ferramenta de aço, utilizada pelos escultores de pedras. Já a segunda, canteiros, possui pelo menos duas interpretações. Uma, referente ao canto entoado pelos escravos durante o cortar de pedras; a outra, proveniente de um tipo de pedra trabalhada e artesanal, esculpida sob encomenda para altares de igrejas, túmulos e outras construções.
Fosse como fosse, o fato é que a atenção na realização diária dos trabalhos era exigida desde o início das atividades, ainda no entorno da grande pedra que iria ser explorada. Isto porque algumas pedras situavam-se abaixo do solo. Após a limpeza da área, o canteiro, com um olhar preciso, distinguia entre tantas faixas e sinais existentes, os três principais veios na pedra, a saber: Corrida, Segundo e Trincante. Desses a principal era a corrida, indicativa da direção da perfuração. A inteligência do canteiro consistia justamente neste procedimento: identificar a Corrida. Além da perspicácia alguns escarpelinos, utilizavam-se também da linha imaginária, sob a pedra, do nascer ao pôr do sol.
Identificada a corrida, os escarpelinos utilizavam, além das marretas, com aproximadamente três quilos; as seguintes ferramentas de aço:
A – Brocas. De formato arredondado, com tamanhos variados entre 15 e 70 cms até três metros, eram introduzidas na pedra, de uma extremidade a outra, através de batidas de marretas. Dependendo do tamanho da pedra eram necessários até três empregados para a realização desta tarefa, sendo um para segurar a broca e dois batendo suas marretas, compassadamente.
B – Risco. Seguindo o curso feito pelas brocas, o risco, com o formato de uma borboleta, servia para riscar o interior da pedra, facilitando o depósito da pólvora.
Com a pedra partida ao meio, devido a explosão da pólvora, acionada por pavil, os canteiros realizavam trabalhos minuciosos, utilizando os seguintes instrumentos de aço:
1. Escarpelo. Parecido com a talhadeira de um pedreiro, servia para fazer riscos na pedra, orientando os trabalhos de penetração dos ponteiros.
2. Ponteiros. Perfuravam a pedra para a introdução dos pixotes.
3. Pixote. Pequenos “ pregos”, introduzidos na pedra, capazes de, com o impacto dos marrões, por propagação, quebrá-la numa reta contínua. Em algumas pedras eram utilizados até 50 pixotes.
4. Unheta. Utilizada para retirar as irregularidades das pedras, é considerado instrumento de cantaria, sua ponta achatada permitia “alisar” a pedra.
5. Escabecino. Necessário para acertar as pontas do paralelepípedo. Para a sua manipulação era exigida a picola, marreta de cabo curto pesando cerca de 1 quilo e meio.
Vale ressaltar que com essas ferramentas os trabalhadores escarpelinos de Mauá não limitaram-se à confecção de paralelepípedos e guias. Como se não bastasse, ainda foram diretamente responsáveis por diferentes esculturas até hoje existentes. Destas, podemos citar, o Monumento às Bandeiras de Vitor Becheret.
Inclusive o relato de antigos canteiros apontam
É importante observarmos que, além dos riscos na manipulação dessas ferramentas, o cotidiano desses trabalhadores era extremamente árduo, sendo que a jornada de trabalho na época podia atingir até dez horas diárias. Assim tornavam-se freqüentes os acidentes. O mais comum era a penetração de lascas de pedras nos olhos dos trabalhadores. Para retirá-las, em delicadas manobras, invocava-se a ajuda de Santa Luzia, protetora dos olhos. Por isto foi colocada uma imagem desta santa numa gruta, no interior de uma grande pedreira, pertencente aos Ferrari, hoje importante parque ecológico municipal, denominada Santa Luzia.
Matacão, Macacos e Bodes:
Na história econômica de Mauá, a extração de pedras tornou-se importante atividade desde as primeiras décadas do século passado. Na época, ao longo da Avenida Barão de Mauá, outrora também denominada Estrada do Pilar, Estrada da Gruta e Estrada das Pedreiras, instalaram-se diferentes empresas integradas à confecção de paralelepípedos, pedras, guias e pedregulhos. Alguns bairros, inclusive, foram desenvolvendo-se concomitantemente ao crescimento dessa atividade. Entre outros, podemos citar, o Bairro do São João, Itapark, ou parque das pedras e, também, Itapeva, pedra arrendondada.
No universo dos trabalhadores em pedreiras, particularmente o grupo dos canteiros, além da devoção à Santa Luzia – protetora dos olhos - e da incrível habilidade na arte de cortar pedras, havia termos específicos relacionados às suas tarefas diárias. Entre outros podemos citar, Matacão empregado para apontar a grande pedra intacta no terreno que seria objeto de exploração. Também havia Macaco, utilizado para discriminar o paralelepípedo e Bode que designava o macaco mal feito.
Aliás, numa época em que não havia ambulâncias, nem tão pouco resgate ou outras formas de socorro imediato, alguns proprietários de pedreiras, assim como donos de olarias, destinavam seus caminhões para amparar os conhecidos que necessitavam de assistência. Vítimas de acidentes domésticos ou no trabalho, como também de complicações nos trabalhos de parto, eram prontamente atendidas.
Assim como no cotidiano das olarias, o trabalho, em algumas pedreiras, foi predominantemente familiar. Entre outros podemos citar os Cyrillos, cujo patriarca pôde contar com seus dez filhos na extração de pedras; e os irmãos Milanês, proprietários de grande pedreira na área próxima a Adutora Rio Claro. Aliás, a própria habilidade de cortar pedras era transmitida de pai para filho.
Na verdade, estas e outras observações foram fornecidas por Arthur Caetano Matielo, trabalhador em pedreiras no município durante a década de 1940. Durante seu depoimento, ressaltou também que, ao chegar em Mauá no início do século passado, à procura de trabalho, as principais edificações iam sendo assentadas sobre alicerces de pedra. Dentre outras, destaca a Igreja Matriz e a Capela do São João, no bairro homônimo, erigida em 1927, porém já demolida. De fato, a importância da extração de pedras em nossa cidade pode ser observada em inúmeras outras obras, residências etc.
A coluna também agradece as contribuições dos seguintes trabalhadores nas pedreiras na região do São João: Antonio Dell Dono, Mário Manuel e, também, os seguintes canteiros na região do atual Itapark, José Simião de Lima, José Maria de Gusmão e Geraldo da Rosa da Silva.
Finalmente vale observar que o leitor interessado em aprofundar seus estudos sobre os trabalhadores em pedreiras na região do ABC, pode consultar a dissertação de mestrado, defendida na Universidade de São Paulo em 1997, intitulada: Os canteiros de Ribeirão Pires, escrita por Antonio José Marques.